A ideologia de O Fim da Ideologia

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O surpreendente é que, de fato, tantas pessoas negassem tais aspectos [ideológicos] num passado não muito distante. Desse modo, gerações de estudantes - principalmente no período pós-guerra - foram levadas, por um número de cientistas sociais patrocinados por fundações a acreditar que a ideologia fora inteiramente abolida e substituída, para sempre, pelos sistemas íntegros e sóbrios da ciência social friamente factual.

Escapou à atenção não somente dos teórica e politicamente ingênuos, mas, inúmeras vezes, mesmo daqueles que deveriam ter mais conhecimento a esse respeito, o fato de que tais alardes em si eram manifestações disfarçadas de um tipo peculiar de "falsa consciência" ideológica - que rotula arbitrariamente seu adversário de "ideólogo", de modo a conseguir reivindicar para si, por definição, total imunidade a toda ideologia, isto é, que "provou" aprioristicamente tanto o vício como a virtude. Foi assim que um intelectual tão sério e crítico como Robert L. Heilbroner louvou no The Reporter o famigerado livro de Daniel Bell, O Fim da Ideologia à época de sua publicação: 'Um livro de raro interesse [...] encontramos aqui mais que um comentário sobre o 'esgotamento das idéias políticas nos anos 50'; também revelou para nós a manifestação da realidade social, uma vez tirados os óculos ideológicos do passado". Uma triste submissão à total mistificação!

A economia do espaço requer que nos limitemos a citar um único exemplo, a fim de testarmos os argumentos dessa "ciência social" ideologicamente neutra, solidamente factual e despreconceituosa. Como veremos, todavia, mesmo esse único exemplo é suficientemente esclarecedor da abordagem que supostamente teria "revelado para nós a manifestação da realidade social" em sua transparência, graças à remoção dos óculos ideológicos do passado. O exemplo que tenho em mente está à página 385 de O Fim da Ideologia:

"A NEP foi um passo extraordinário para Lenin, pois ele teve que admitir que não havia nada nos 'livros antigos' que preparasse o partido para um passo tão radical como a restauração parcial do capitalismo. Num ensaio escrito pouco antes de sua morte - um ensaio que revela a linha doutrinária que havia norteado o pensamento de Lenin - ele declarou pesarosamente: "Nem mesmo ocorrou a Marx escrever sobre o assunto; ele morreu sem deixar um única citação precisa ou orientação irrefutável a esse respeito. É por isso que devemos enfrentar essa dificuldade inteiramente através de nossos próprios esforços".

Agora, a verdade intragável é que as grandes "revelações" não-ideológicas de Daniel Bell nada mais são que violações graves das condições mais elementares da pesquisa e análise científicas - mas, é claro, violações cometidas em nome de uma "ciência social genuína", radicalmente oposta à "ideologia obsoleta".

Se nos dedicarmos à morosa tarefa de verificar os fatos supostos - o que, infelizmente um número insuficiente de pessoas faz, permitindo, assim, com freqüência, a difusão das distorções as mais tendenciosas como evidência incontroversa -. concluiremos não só que não há absolutamente nada que fundamente os julgamentos controversos de Bell, mas que também a citação de Lenin em questão (isto é, o próprio texto de Lenin e não a sua versão distorcida por Bell) demonstra o exato oposto daquilo que nos é dado a acreditar de maneira "verdadeiramente científica". Pois o texto autêntico de Lenin é o seguinte:

"Com respeito ao capitalismo de Estado, eu penso que, geralmente, a nossa imprensa e o nosso partido erram quando mergulham no intelectualismo, no liberalismo: nós filosofamos sobre como o capitalismo de Estado deve ser interpretado e consultamos os livros antigos. Mas nesses livros não encontraremos o que estamos discutindo; eles tratam do capitalismo de Estado que existe no interior do capitalismo. Nem um único livro jamais foi escrito sobre o capitalismo de Estado sob o comunismo. Não ocorreu nem mesmo a Marx escrever uma palavra sobre esse assunto; ele morreu sem deixar uma única declaração precisa ou orientação definitiva a esse respeito. É por isso que devemos superar a dificuldade inteiramente por nossa conta. E se fizermos um levantamento geral da nossa imprensa e observarmos o que foi escrito sobre o capitalismo de Estado, como tentei fazer quando preparava o presente relatório, convenceremo-nos de que ela está errando o alvo, de que está olhando em uma direção totalmente errada."

Como podemos observar, então, a versão de Bell não somente retira do seu contexto as palavras de Lenin - se ele não o tivesse feito, em nenhum momento alguém teria levado a sério suas afirmações e acusações -, mas também assume a forma de uma tradução que transforma o trecho original na "única citação" doutrinária "precisa ou esclarecimento irrefutável" (seja lá o que possa significar "esclarecimento irrefutável).

Na citação original não há absolutamente nenhum vestígio de um comportamento "pesaroso" por parte de Lenin, nem mesmo de "admitir" que, sob o constrangimento de circunstâncias bem singulares, os "livros antigos" não podem ajudar. Na realidade, desde o início de sua mocidade, ele sempre assumiu "passos extraordinários" para adaptar sua posição teórica às condições sócio-históricas mutáveis (Como é fato bem conhecido, mais de uma vez ele foi acusado de ser um mero "realista astuto", por críticos que pensavam que ele deveria ser censurado por falta de pureza doutrinária). Pelo contrário, ele insiste enfaticamente que o "intelectualismo" e o "filosofismo" sobre os problemas em jogo, com referência a livros antigos, constituem um total engano: a imprensa que adota tal procedimento "está errando o alvo, está olhando em uma direção completamente errada". Também, no seu discurso de encerramento do debate, ele censura Preobrazhensky por ter argumentado em termos de "escolasticismo puro", por fundamentar sua análise em livros antigos e acontecimentos passados, enquanto "está é a primeira vez na história da humanidade que vemos uma coisa assim" e, portanto, "não devemos olhar para o passado".

E tudo isso deve ser a prova da "linha doutrinária que havia norteado o pensamento de Lenin" - isto é, prova aos olhos do "cientista social" supremamente objetivo, que conseguiu se livrar em definitivo dos "óculos ideológicos do passado", a tal ponto que se torna capaz não somente de anunciar o "fim da ideologia", como também de ver coisas no texto de Lenin que simplesmente não estão presentes para nós, mortais inferiores, portadores de óculos ideológicos.

Mas, ironia à parte, o texto pretensamente científico de Daniel Bell é escandalosamente deturpador, mesmo em seus mínimos detalhes. Ele declara que a citação provém de um "ensaio" escrito por Lenin "pouco antes de sua morte". Na realidade, provém de um discurso feito no XI Congresso do partido e publicado a partir de transcrições estenografadas. Mais importante ainda, caso se queira localizar a citação discutida: ela não foi escrita por Lenin "um pouco antes de sua morte", mas quase dois anos antes de sua morte: o discurso de abertura foi proferido no dia 27 de março de 1922, e sua resposta a Preobrazhensky, um dia depois, para ser mais preciso. Quanto à fonte, há a informação de que a citação se encontra à página 338 dos Trabalhos Selecionados de Lenin, v. XIV, citado em The roots of American Communism, de Theodore Draper. Mas mesmo essa referência de segunda mão é ridiculamente enganosa, pois Draper dá o volume IX - e não o XIV - como sua referência (O leitor interessado pode encontrar o texto de Lenin no volume XXXIII de suas Obras Escolhidas).

Esse é, então, o desempenho real dessa ciência social não-ideológica, objetiva, factual e rigorosamente acadêmica. E como essa "ciência" consegue esconjurar seu adversário ideológico da forma que lhe aprouver, consegue também descartar o problema de extrema complexidade com a maior facilidade. Ideologia? Esse é o outro lado. E mesmo do outro lado, ela representa o passado, uma vez que agora todos nós vivemos numa adorável sociedade "pós-capitalista" e genuinamente "industrial". Portanto, os problemas ideológicos simplesmente não existem mais. O conflito e a complexidade são prontamente substituídos pela simples e profunda "engenharia social" e agora podemos todos viver felizes para sempre.

Mas o que incomoda, contudo, é que a realidade social se recusa a considerar as soluções revolucionárias dessa "ciência social" e insiste na existência de conflitos e crises que escapam à simplicidade eficiente de modelos e esquemas volitivamente pré-fabricados. Dessa forma, nossos ex-campeões da "sociedade industrial pós-capitalista" são forçados a fazer uma reviravolta espetacular. Daniel Bell, por exemplo, no momento está engajado na teorização da chamada "sociedade pós-industrial". De fato, agora ele chega ao ponto de falar sobre o "recorde desanimador" da ciência social recente (evidentemente, não de sua própria), acrescentando que: "Nas áreas da educação, bem-estar e planejamento social há pouco conhecimento a que se possa recorrer para efeito de traçar diretrizes. Os cientistas sociais começaram relutantemente a admitir que os problemas são mais complexos do que pensavam".

Contudo, a aceitação relutante do fracasso desanimador está bem longe de chegar à identificação das raízes ideológicas de tal fracasso. Pelo contrário: já que os pressupostos originais da postura ideologicamente isenta permanecem não questionados, o alicerce fundamental continua como antes. Apenas a fachada recebe um verniz superficial para enfatizar a adequação da edificação às circunstâncias turbulentas atuais. Uma condição elementar para a melhora do "recorde desanimador" seria um reexame radical das concepções ideológicas da ciência social "axiologicamente neutra", mas isso, sem dúvida, escapa sistematicamente da atenção daqueles que têm um interesse amplo e manifesto na manutenção do sufocamento ideológico da ciência social, até há pouco tempo totalmente incontestado.

Fonte: MÉSZÀROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social - Boitempo Editorial.

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Entrevista de Slavoj Žižek no Roda Viva

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Professor da Universidade de Lubliana, na Eslovênia, Diretor Internacional do Instituto de Humanidades da Universidade de Londres, Slavoj Žižek é um dos principais teóricos contemporâneos. Navega pelos mais variados cenários intelectuais. Da teoria social para a crítica da cultura, da teoria do cinema para o marxismo, a psicanálise, a política. Nome presente no debate sobre a desintegração dos estados socialistas e sobre o papel da esquerda no mundo atual, Žižek também aborda os dilemas que a globalização e a crise financeira colocam às pessoas e que tanto economistas quanto psicanalistas tentam decifrar. Provocativo, polêmico, Slavoj Žižek constrói um olhar e um pensamento diferente que o destaca na crítica da cultura contemporânia e na análise dos desafios políticos do mundo.

Entrevistadores: Maria Rita Khel, psicanalista e escritora; Laura Greenhalgh, editora executiva dos cadernos Aliás e Cultura do jornal O Estado de S. Paulo; Emir Sader, sociólogo e Vladimir Safatle, professor do departamento de filosofia e do instituto de psicologia da Universidade de São Paulo.

No Google video: http://video.google.com/videoplay?docid=8610224796251814184

Ou para baixar: http://filosofiacomcafe.blogspot.com/2009/02/roda-viva-slavoj-zizek.html

Fonte e postagem original por Mateuz (Karl Marx - Brasil) em: http://karlmarxbrasil.forumeiros.com/video-f5/entrevista-do-zizek-no-roda-viva-t530.htm

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