Na primeira edição de O Poder da Ideologia - livro completado em agosto de 1988 - citei uma importante e reveladora conferência dada em 1930 por John Maynard Keynes. Naqueles dias, os principais ideólogos da ordem social vigente, altamente confiantes na segurança de sua posição de poder determinar, como se fosse um direito de nascença, o que era legítimo (ou condenável) nas discussões políticas e teóricas, não tinham vergonha de declarar abertamente seus interesses ideológicos, embora isso contrastasse nitidamente com o encobrimento destes sob as afirmações de uma presumida objetividade absoluta - que entrou em moda algum tempo depois - e pela classificação apenas de seus adversários como imperdoavelmente ideológicos. De fato, a referida conferência de Keynes em 1930 - "Possibilidade Econômicas de nossos Netos" - foi mais tarde incluída num volume descaradamente ideológico intitulado Essays in Persuasion.
Em outra conferência incluída no mesmo volume - escrita com a mesma confiança ilimitada presente em "Possibilidades Econômicas de nossos Netos" -, intitulada "Serei eu um liberal?" e apresentada em data anterior, em 1926, Keynes admitia abertamente que, "quanto à luta de classes como tal [...] a guerra de classes vai me encontrar do lado da burguesia educada", em vez de fingir, como é hoje comum em círculos intelectuais e políticos respeitáveis, que não existe essa coisa chamada luta de classes.
Acredita-se que ela seja uma invenção de um certo Karl Marx, embora o vigoroso diagnóstico do papel seminal desempenhado pela luta de classes no desenvolvimento histórico tenha sido primeiramente elaborado por alguns importantes historiadores franceses da "burguesia educada" e sua contribuição teórica altamente original tenha sido reconhecida pelo próprio Karl Marx.
Nas suas "Possibilidades Econômicas de nossos Netos", Keynes decretou com cândida confiança e otimismo que "o problema econômico da humanidade" (como ele o chamava) estará completamente resolvido dentro de cem anos. De acordo com essa projeção, o "problema econômico" - na teorização completamente divorciada de todas as nossas dimensões sociais fundamentais - estará solucionado de forma tão cabal que nosso dilema será o de como nos ocuparmos na total ausência das - em suas palavras: "más" - pressões econômicas que hoje nos motivam. Assim, no avanço irresistível daquele mundo de lazer ilimitado, "honraremos os que nos podem ensinar como colher virtuosamente e bem o dia e a hora, as pessoas maravilhosas capazes de ter prazer direto com as coisas, os lírios do campo que não trabalham nem tecem".
A questão a ser enfatizada aqui é que outros dezesseis anos se passaram desde que eu citei essas palavras, e estamos a apenas 26 anos do momento mágico de realização quase bíblica postulado por Keynes. Mas o que aconteceu durante esses 74 anos: perto de três quartos do caminho até a terra prometida? Estamos mais próximos das condições tão confiantemente antecipadas pelo autor de Essays in Persuasion?
A resposta sensata é: de forma alguma. Muito pelo contrário, apesar de todos os avanços das forças produtivas de nossa sociedade - que sob nossas atuais condições de existência são forças destrutivas ubiquamente difundidas e irresponsavelmente utilizadas -, as gritantes desigualdades que somos forçados a enfrentar com irredutível determinação para nos aproximarmos uma polegada dos objetivos desejados tornaram-se imensamente maiores e, do ponto de vista estrutural, ainda mais profundamente arraigadas do que antes. Ao mesmo tempo, os perigos que devemos vencer para ter qualquer futuro, ainda que não um futuro idealizado, estão hoje muito mais agravados do que nos piores sonhos de Keynes.
À taxa de progresso que tivemos ao longo dos últimos 74 anos, para resolver as desigualdades estruturais de nossa sociedade precisaríamos, não de 26 anos para chegar à meta divisada por Keynes, mas de um tempo infinito. Entretanto, o problema é que a humanidade não tem uma infinidade de tempo a sua disposição, pois, na realidade, ela é forçada a enfrentar o perigo de potencial auto-aniquilação em razão da aparente incontrolabilidade de seu modo de reprodução sociometabólica sob o domínio do capital.
Para apoiar seu ilimitado otimismo "persuasivo", Keynes depositou fé numa visão ingenuamente mecanicista que projetava a força automática no "juro composto" para chegar à desejada acumulação de capital. De acordo com essa visão, era destino irresistível dessa ilimitade acumulação de capital - que emanava não do degradante poder da produção exploradora, mas de um misterioso e absolutamente benéfico domínio financeiro do "juro composto" (uma ficção neutra semelhante às fantasias globalizantes de nosso tempo; nos dois casos, tendenciosamente separada do papel do garantidor e impositor: o Estado capitalista, que está longe de ser neutro) - que, por sua vez, deveria trazer consigo o projetado final feliz.
Seu confessado horizonte ideológico de "burguês educado" não permitia que Keynes visse ou admitisse que o imperativo estruturalmente inalterável da incansável acumulação de capital, que é contrária, mesmo de uma perspectiva de mais longo prazo, a qualquer idéia de tranqüila gratificação humana e concepção correspondentemente diferente de tempo, era de todo incompatível com o movimento da atual ordem da sociedade - em que, de acordo com suas próprias palavras "o mau é útil, o bom não é" -, "que sai do túnel da necessidade econômica para a luz do dia" de uma ordem social qualitativamente diferente e humanamente gratificante. Assim tolhido pelos ditames de seus interesses sociais de "burguês educado", Keynes embelezou e alardeou nos seus Essays of Persuasion exatamente a causa da perigosa condição da humanidade - condição perigosa que é, no fim das contas, estruturalmente garantida - como o remédio ideal para todos os problemas e contradições existentes. Uma falácia evidente, e da pior espécie.
Na realidade, nem durante a vida de Keynes, nem depois, nada podia apoiar semelhante visão. O merecido colapso da reunião da OMC em Cancún em 2003, que, graças à intervenção desafiante dos "condenados da Terra", enfatizou a condição miserável da esmagadora maioria da humanidade, coloca em relevo o quanto ainda estamos distantes até dos primeiros tímidos passos na direção do enfrentamento dos grandes perigos e das cumulativas contradições de nossas "más" dificuldade, isto para não falar da descoberta das postuladas soluções ideais keynesianas.
Eis onde nos encontramos hoje, quando já não podemos nos dar o luxo de confundir as causas fundamentais das dificuldades da humanidade com a ilusória solução para elas proposta - totalmente ilusória e ao mesmo tempo altamente tendenciosa -, seja ela oferecida com uma confiança honesta e aberta, como fez John Maynard, ou na forma da camuflagem ideológica enganadora freqüentemente praticada em nossos dias por "neutros" defensores pseudo-objetivos da ordem existente. Pois todas as aparências de neutralidade ideológica só podem agravar nossos problemas quando a necessidade da ideologia é inevitável, como acontece hoje e deverá continuar no futuro previsível. Na verdade, inevitável enquanto continuar sendo necessário "vencer os conflitos" que continuam a surgir dos interesses inconciliáveis das forças hegemônicas alternativas que se enfrentam na nossa atual ordem social de dominação e subordinação estrutural.
Assim, a necessidade de um exame crítico dos estratagemas da ideologia dominante - em geral desenvolvidos nos produtos aparentemente impenetráveis de geradores de fumaça institucionalmente bem lubrificados - nunca foi tão grande quanto em nossos dias. As apostas estão se tornando cada vez mais altas, pois os antigos instrumentos para tratar algumas de nossas dificuldades - ainda que fossem limitados, mesmo no passado - estão hoje sistematicamente abalados e destruídos pela força inexorável do Estado, em nome do interesse na perpetuação do domínio do capital, com a ajuda da conformidade ideológica e política duramente imposta. Os sinais dessa tendência para a garantia de uniformidade exigida pela necessidade do capital de impor o Estado de ideologia única são muito perigosos. A desejada uniformidade deve ser imposta por todos os meios, até mesmo pelos potencialmente - e, dadas as novas guerras imperialistas, já não potencialmente - mais violentos.
O impacto dessa perigosa tendência de nosso tempo atinge também áreas antes celebradas em nome do modelo que se presumia compulsório para todo o mundo: a estrutura institucional da democracia e liberdade ocidentais. Mas o que antes foi um genuíno artigo de fé liberal, ainda que muito tênue, tornou-se nada mais do que uma fachada cínica para aventuras agressivas. Citando John Pilger:
O enfraquecimento da Carta de Direitos dos Estados Unidos, o desmantelamento do julgamento por júri na Grã-Bretanha e de um pletora de liberdades civis associadas são parte da redução da democracia a um ritual eleitoral: ou seja, a competição entre partidos indistinguíveis para ganhar a administração de um Estado de ideologia única.
A mistificação ideológica e Gleichschaltung - que significa a compreensão em um modelo prescrito de uniformidade - é parte essencial desse processo opressivo. É, portanto, muito importante lutar contra os esforços correntes para impor em toda parte o Estado de ideologia única, não importa o quanto ele pareça "racional" e universalmente louvável.
Istáven Mészàros
Rochester, Agosto de 2003 - Fevereiro 2004.
Fonte: MÉSZÀROS, István. O Poder da Ideologia - Boitempo Editorial.
"O mito da neutralidade ideológica e a imposição de um Estado de ideologia única"
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