O Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) reagiu à manifestação da AGU (Advocacia Geral da União) que defendeu* o perdão aos crimes cometidos pela repressão da ditadura militar (1964-1985) perante o STF (Supremo Tribunal Federal).
O jurista ironizou a tentativa da AGU de desqualificar a ação promovida pela OAB nacional. “Estamos diante de uma incômoda alternativa. Ou o Ilustre Advogado Geral da União, que aprovou a manifestação, não sabe o que é uma argüição de descumprimento de preceito fundamental —hipótese que deve ser repelida com vigor, pois Sua Excelência foi aprovado no exame de habilitação profissional perante a OAB, além de gozar da presunção de notável saber jurídico— ou então a conduta processual da Advocacia Geral da União, nesta demanda, não se coaduna com as elevadas funções do órgão”.
Comparato encaminhou nesta segunda-feira (9/2) nova manifestação ao ministro Eros Grau, relator do caso no Supremo, em que refuta os argumentos da AGU —para quem a ação não poderia ter prosseguimento, já que não haveria controvérsia jurídica ou judicial sobre a interpretação da Lei de Anistia.
Comparato, que preside a Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB ressaltou que a ADPF não é um tipo de ação onde existam partes, e que nem mesmo a possível existência de interesses conflitantes é o centro do processo.
“Este não é um processo litigioso, pois seu objeto não é uma lide, isto é, um conflito de interesses, caracterizado pela pretensão de uma das partes e pela resistência de outra ou outras. (...) Não se trata de julgar qual das partes tem razão em relação à outra, mesmo porque, em tais processos, não há partes, no sentido técnico da palavra”, afirmou o jurista.
Procurada pela reportagem de Última Instância a AGU informou que não comentaria a manifestação de Comparato.
O texto ainda questiona o posicionamento da AGU diante da divisão de setores do governo sobre o tema. Os ministérios da Justiça, da Casa Civil e dos Direitos Humanos são favoráveis à punição dos torturadores. Já o Itamaraty e o Ministério da Defesa defendem a interpretação até hoje dada à Lei 6.683, de 1979.
LEIA A SEGUIR A ÍNTEGRA DA NOVA MANIFESTAÇÃO DA OAB:
Exmo. Sr. Ministro Eros Grau, DDº Relator da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153:
O CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL , nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, na qual figura como Requerente, tendo em vista a manifestação da Advocacia Geral da União de fls., vem dizer o que segue:
1 - A manifestação da Advocacia Geral da União é de todo impertinente, no sentido próprio do vocábulo; ou seja, ela é descabida e despropositada, pois não se refere minimamente àquilo que se acha em questão neste processo.
Escusa ressaltar o óbvio: este não é um processo litigioso, pois seu objeto não é uma lide, isto é, um conflito de interesses, caracterizado pela pretensão de uma das partes e pela resistência de outra ou outras.
A argüição de descumprimento de preceito fundamental, tal como a ação direta de inconstitucionalidade ou a ação declaratória de constitucionalidade, não submete ao poder jurisdicional um conflito de interesses, ligados a partes determinadas. Não se trata de julgar qual das partes tem razão em relação à outra, mesmo porque, em tais processos, não há partes, no sentido técnico da palavra. Há um ou mais requerentes, legitimados a pedir ao Judiciário que diga o direito, não em termos pessoais, mas numa dimensão geral. O Conselho Federal da OAB é o Argüente, neste caso, como poderia sê-lo qualquer das entidades mencionadas no art. 103 da Constituição Federal (Lei nº 9.882, de 1999, art. 2º).
No presente processo, não há direito próprio de alguém, a ser reconhecido contra outrem. Há o interesse superior de todos, em que seja mantida a coerência interna da ordem jurídica estatal, à luz dos preceitos fundamentais expressos na Constituição.
Em suma, cuida-se, no presente processo, de defender o Estado de Direito, que é um bem comum do todos e não o privilégio de um ou alguns apenas.
2 - Ora, surpreendentemente, chamada a se manifestar, a Advocacia Geral da União decidiu transformar este processo numa querela particular entre ela e Ordem dos Advogados do Brasil, como se estivesse em causa, no presente processo, um conflito corporativo de interesses.
Pelo disposto no art. 131 da Constituição Federal, compete à Advocacia Geral da União representar a União Federal, judicial ou extrajudicialmente. O representante, escusa lembrá-lo, não age por interesse próprio; ele defende interesse alheio. E qual o interesse próprio da União a ser defendido no caso? A manifestação de fls. não o esclarece.
De nada vale ao representante da União alegar que foi chamado a se manifestar nos autos por decisão de Vossa Excelência, com base no disposto no art. 5º, § 2º da Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Essa regra processual visa a fornecer ao órgão julgador a oportunidade de algum esclarecimento de ordem formal, com relação à lei ou ao ato normativo, tido como violador de preceito fundamental. Por exemplo, houve sanção regular da lei pelo Chefe do Poder Executivo? O indigitado ato normativo foi praticado por autoridade federal competente? Houve regular publicação no Diário Oficial?
Mas a Advocacia Geral da União não se conforma com essa função, que lhe parece por demais modesta. Ela pretende ombrear-se com a Procuradoria-Geral da República, para se manifestar sobre o mérito da controvérsia constitucional. Ou seja, veio meter-se onde não foi chamada.
3 - A alegação de que a presente argüição de descumprimento de preceito fundamental não pode ser julgada no mérito, por ausência de controvérsia judicial sobre a matéria argüida, é realmente muito infeliz.
Não se vê por que razão a "controvérsia constitucional", mencionada no art. 1º, parágrafo único, inciso I da Lei nº 9.882, deve necessariamente existir em juízo. Ninguém estimará, por exemplo, irrelevante para a ordem jurídica do país que o Supremo Tribunal Federal ponha fim a uma controvérsia suscitada no seio da Administração Pública, a respeito da compatibilidade, com a Constituição, de lei ou ato normativo federal constitucional.
É público e notório o grave dissenso existente no seio do Poder Executivo federal, a respeito do âmbito de aplicação da anistia concedida pela Lei nº 6.683, de 1979. Enquanto o Ministério da Justiça, a Casa Civil e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos entendem incabível a anistia para os agentes públicos do regime militar, autores de assassínios e torturas de toda sorte de opositores políticos, o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Defesa defendem uma interpretação contrária da mencionada lei.
De onde a pergunta inevitável: a Advocacia Geral da União veio a estes autos na defesa de qual interesse específico da União Federal? Certamente não dos órgãos do Congresso Nacional, pois eles foram intimados em separado a se manifestarem. No interesse do Poder Executivo? Ora, como se acaba de lembrar, não há a menor consenso, no seio do governo federal, a respeito da interpretação a ser dada à Lei nº 6.683, de 1979.
4 - De todo o exposto, forçoso é reconhecer que estamos diante de uma incômoda alternativa. Ou o Ilustre Advogado Geral da União, que aprovou a manifestação de fls., não sabe o que é uma argüição de descumprimento de preceito fundamental - hipótese que deve ser repelida com vigor, pois Sua Excelência foi aprovado no exame de habilitação profissional perante a Ordem dos Advogados do Brasil, além de gozar da presunção de notável saber jurídico (Constituição Federal, art. 131, § 1º) -; ou então a conduta processual da Advocacia Geral da União, nesta demanda, não se coaduna com as elevadas funções do órgão.
Termos em que,
Pede juntada, para constar.
Brasília, 09 de fevereiro de 2009.
Fábio Konder Comparato
OAB/SP nº 11118
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